VAMOS LÁ! CLIQUE PARA SEGUIR

VOCÊ ENCONTROU O QUE QUERIA? PESQUISE. Nas guias está a matéria que interessa a você.

TENTE OUTRA VEZ. É só digitar a palavra-chave.

TENTE OUTRA VEZ. É só digitar a palavra-chave.
GUIAS (OU ABAS): 'este blog', 'blogs interessantes', 'só direito', 'anotações', 'anotando e pesquisando', 'mais blogs'.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

O Poder Judiciário e a Reforma da Previdência Social

Ovídio Rocha Barros Sandoval
ADVOGADO E JUIZ DE DIREITO APOSENTADO DO ESTADO DE SÃO PAULO

SUMÁRIO: I. Alguns princípios constitucionais - 1.
O princípio da divisão dos poderes - 2 e 3. Rigidez da
Constituição - 4. Do Poder Judiciário na Constituição
- 5. Do Poder Judiciário nacional - 6. O exercício da
função jurisdicional - 7 e 8. A importância do Poder
Judiciário - 9 a 13. O art. 93 da Constituição. O
poder de iniciativa - 14 e 15. Da ofensa à Constituição
- 16 a18. Poder de reforma da Constituição - 19.
Dos direitos e garantias individuais - 20. Do sentido
pleno das cláusulas pétreas - 21 e 22. Do controle da
constitucionalidade; II. Do direito adquirido - 23.
Direito adquirido. Conceito - 24 a 26. O artigo 5º,
XXXVI, da CF - 27 a 33. Do direiro adquirido e da
emenda à Constituição; III. Algumas realidades - 34 e
35. De uma funesta realidade histórica - 36 e 37.

Importante constatação - 38 a 40. Da falácia do chamado
“governo dos juízes” - 41 a 45. Das garantias da
Magistratura - 46 a 48. A mídia e o Judiciário - 49. De
uma verdade sabida, mas sempre esquecida - 50 a 52.
Da desintegração do Estado Federal; VI. Do direito à
aposentadoria - 53. A lição de Francisco Campos - 54.
Do entendimento do STF - 55. Parecer da então Consultoria-
Geral da República - 56. Da jurisprudência sumulada
do STF - 57. Síntese da questão - 58 a 62. Do
regime constitucional anterior à Emenda nº 20/98 - 63.
Importante conclusão; V. Dos proventos da aposentadoria
- 64. Sua natureza jurídica - 65. Da obrigação
do Estado - 66 a 69. Da intangibilidade do direito adquirido - 70 a 72. Da regra constitucional da majoração;
VI. Conclusões - 73 e 74. Da estrutura constitucional
- 75 e 76. Do Poder Judiciário - 77. Do
poder de iniciativa - 78 a 80. Do poder reformador
ou de 2º grau - 81. Direitos e garantias inviduais - 82
e 83. Do controle jurisdicional das emendas à Constituição
- 84 a 86. Do direito adquirido - 87. Tratamento
injusto ao Poder Judiciário - 88 e 89. Garantias da
Magistratura - 90. Do subteto - 91 a 93. Do direito à
aposentadoria - 94 a 95. Do provento da aposentadoria
- 96. Conclusão final


I. Alguns princípios constitucionais
O princípio da divisão dos poderes
1. O Estado Federal Democrático de Direito, consagrado na Constituição
da República de 1988, prevê o Poder Judiciário, ao lado do Executivo e do Legislativo,
como Poderes da União, independentes e harmônicos entre si (art. 2º).
Trata-se de princípio fundamental incluído entre as chamadas cláusulas
pétreas, pois não poderá ser objeto de emenda à Constituição “a separação dos
Poderes” (art. 60, § 4º, III).
Rigidez da Constituição
2. O Estado brasileiro é regido por uma Constituição rígida que lhe dá
forma determinada e fixa os princípios cuja observância é necessária para que
essa forma não se altere.
Diante de tal realidade, a própria Constituição fixa os critérios para sua
possível reforma ou alteração.
Nesse terreno da Emenda à Constituição, são fixadas a forma de sua
proposta, votação, discussão e promulgação, bem como explicita, pela vez
primeira em nosso Constitucionalismo, as matérias que não poderão ser objeto
de Emenda (art. 60 e parágrafos).
3. Assim sendo, a Constituição veda qualquer deliberação legislativa que
esteja em desarmonia com o seu texto, bem como possa o Poder Legislativo
alterá-la por meios ordinários.
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
85
Do Poder Judiciário na Constituição
4. Quanto ao Poder Judiciário, a Constituição lhe confere o monopólio
da função jurisdicional, ao dispor sobre o princípio do juiz natural: “a lei não
excluíra da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Trata-se de Poder com efetiva autonomia institucional, e a independência
do Judiciário está assegurada, com a autonomia funcional concedida à
Magistratura.1
Na esfera da autonomia institucional,“vigoram os princípios organizativos
a) do autogoverno; b) da auto-administração; c) da inicialidade legislativa e d) da
auto-administração financeira”.2
Do Poder Judiciário nacional
5. Entre nós, impera o princípio constitucional da unidade da jurisdição,
vindo o saudoso professor José Frederico Marques a pontificar: “A jurisdição,
como atividade específica de um dos órgãos da soberania nacional, é poder
essencialmente idêntico, qualquer que seja a natureza jurídica do conflito que
deva resolver. Dessa identidade essencial, dimana o conceito da unidade e homogeneidade
da função jurisdicional do Estado”.3
De outra parte, o Poder Judiciário é um só, do ponto de vista funcional,
e, “sob esse aspecto, não há Judiciário federal e Judiciários estaduais, e sim o Poder
Judiciário nacional”.4
O saudoso e querido professor Vicente Ráo, após transcrever lição de
Pimenta Bueno, enaltecendo o papel constitucional do Poder Judiciário, terminando
por aduzir que “a constituição especial do Poder Judiciário é um objeto
digno de toda a atenção nacional”, esclarece ser “sábia essa lição que, a par da
relevância da missão do Poder Judiciário, alude às condições de sua independência,
bem assim à sua repercussão, certamente sensível, sobre os destinos sociais, o que
vale dizer que possui caráter eminentemente nacional”; por isso nossos mestres
1 CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, “Poder Judiciário: Autonomia e Justiça”, in Revista dos Tribunais, vol. 691, p. 35.
2 Idem.
3 Instituições de Direito Processual Civil, 1ª ed. revista, atualizada e complementada por OVÍDIO ROCHA BARROS
SANDOVAL, vol. I, nº 136, Campinas: Ed. Millennium, 2000, p. 283.
4 Idem, nº 82, p. 184.
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
86
sempre doutrinaram, como João Mendes Júnior, que “o Poder Judiciário, delegação
da soberania nacional, implica a idéia de unidade e totalidade da força,
que são as notas características da idéia de soberania: o Poder Judiciário, em suma,
quer pelos juízes da União, quer pelos juízes dos Estados, aplica leis nacionais
para garantir os direitos individuais; o Poder Judiciário não é federal, nem
estadual; é eminentemente nacional, quer se manifestando nas jurisdições estaduais,
quer se aplicando ao cível, quer se aplicando ao crime, quer decidindo em
superior, quer decidindo em inferior instância”. Assim, “por ser expressão suprema
da soberania nacional, por visar à aplicação da Justiça segundo as condições do
destino social, há de, portanto, organizar-se adequadamente, a fim de poder cumprir
a sua missão”.5
A caracterização nacional do Poder Judiciário está consagrada no art. 92
da Constituição Federal.
O exercício da função jurisdicional
6. O Poder Judiciário, no exercício da função jurisdicional, não se coloca
acima de nenhum dos outros Poderes, pois exerce função estritamente
peculiar à sua natureza e, quando declara, por exemplo, a inconstitucionalidade
de leis do Legislativo ou atos do Executivo, “não faz mais que lhes
mostrar o verdadeiro campo de cada um, chamando a atenção deles somente
por haverem saído dos seus limites e terem querido ultrapassar poder superior,
que é a Constituição”, como leciona o saudoso professor Oswaldo Aranha
Bandeira de Mello.6
O Poder Judiciário, “como a experiência dos países que o adotaram confirma,
é o melhor dos contrapesos aos excessos dos Poderes Executivo e Legislativo”.7
5 Prefácio à obra de OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL, O Poder Judiciário a partir da Independência, São Paulo:
Ed. Resenha Universitária, 1978, p. 4.
6 A Teoria das Constituições Rígidas, Ed. Prefeitura do Município de São Paulo, 1948, os. 137/138. Para o
professor MÁRIO MASAGÃO, “se há possibilidade de predomínio absoluto de um dos Poderes com subjugação
dos demais, é de convir que o Judiciário seja o menos apto dos três para implantar supremacia. Ele não pode
expedir normas gerais, como o Poder Legislativo. Está limitado a decidir dos casos singulares que lhe são
sotopostos. Ele não dispõe, como o Poder Executivo, da força, da legião de subordinados, para tornar efetivas
suas decisões. Pelo contrário, quando se torna necessário o emprego da força, o Poder Judiciário tem de a
solicitar ao Poder Executivo. A única força de que dispõe o Poder Judiciário para se impor e para se fazer
respeitar é, em última análise, a força moral, o princípio de sua autoridade. Mas esta força, ele tem que buscar,
justamente, no respeito às leis, e na manutenção estrita dos limites que lhe são assinados” (idem, p. 139).
7 Ibidem, p. 148
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
87
Otto Bachof observa que a estrutura constitucional do Estado Moderno,
como avanço das necessidades sociais de um lado e a proteção da liberdade de
outro, necessita, forçosamente, de um contrapeso de “una fuerza que se preocupe
de que, al menos, los valores superiores del Derecho y del orden, que la Constitución
ha establecido como fundamentales, permanezcan protegidos; uma fuerza
que decida, al mismo tiempo, com la mayor autoridad posible, si en conflicto
eventual esos valores han quedado salvaguardados, asegurando o restableciendo
la paz jurídica.” E termina por afirmar:
“Esa fuerza solo puede ser el juez.” 8
A importância do Poder Judiciário
7. A existência do Poder Judiciário no Estado Moderno é, assim, de
importância vital. Amesquinhá-lo ou procurar diminuir, até mesmo
por via oblíqua ou reflexa, a sua independência, são condutas que colocam
em risco as conquistas armazenadas, por séculos, em favor da Humanidade.
9
Logo, o Poder Judiciário há de permanecer independente, sem se sujeitar
à tutela de qualquer outro Poder.10
8. Carlos Maximiliano, em comentário à Constituição de 1946, deixou
sábia lição: “...é exatamente nas grandes crises que a proteção dos direitos individuais
e a preservação do interesse público precisam da obediência absoluta ao
estatuto fundamental, e isto se consegue em circundando a Magistratura mais
8 Jueces y Constitución, Madrid: Ed. Civitas, ed. 1987, pp. 53/54.
9 Na tradição grega, pelas palavras de ÉSQUILO, citadas por RUI BARBOSA, se dizia, como intróito na instituição
de um tribunal “Eu instituo este tribunal venerando, sereno, incorruptível, guarda vigilante desta terra através
do sono de todos, e o anuncio aos cidadãos, para que assim seja de hoje pelo futuro adiante” (apud OVÍDIO
ROCHA BARROS SANDOVAL, ob. cit., p. 25).
RUI BARBOSA observou, ainda, que “na frase de WASHINGTON ao nomear os primeiros membros da Suprema
Corte Federal, o Poder Judiciário, neste regime, é a coluna mestra do governo do País; ainda, na expressão
de WASHINGTON, anunciando a JAY a sua escolha para a presidência do grande Tribunal da União, essa
Constituição grandiosa adotada por nós é a chave da abóbada do nosso edifício político, a majestade
incomparável, a preexistência suprema dessa criação, indubitavelmente a mais importante entre todas as dos
estadistas que fizeram a Constituição americana” (idem, p. 96).
10 Aliás, no Congresso Internacional de Juristas, realizado em Nova Delhi em 1959, foi aprovada a seguinte
conclusão: “en toda sociedad libre regida por el imperio de la ley, es requisito indispensable que el poder
judicial sea indepediente“ (OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL, ob. cit., p. 96).
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
88
alta do prestígio de uma autonomia ampla, inatacável, assegurada, em todas as
minúcias, pela própria lei básica”.11
O art. 93 da Constituição. O poder de iniciativa
9. Na conformidade do art. 93 caput da Constituição Federal, é consagrada
a reserva de iniciativa ao Supremo Tribunal Federal da Lei Complementar
que disporá sobre o Estatuto da Magistratura, com a observância
dos princípios ali especificados. No inciso V, está consagrada a
forma de escalonamento de subsídios do Poder Judiciário nacional, que se
constitui, assim, princípio orientador da Lei Complementar referente ao
Estatuto da Magistratura, cuja iniciativa é privativa do Supremo Tribunal
Federal.
10. Em tais condições, surge razoável a seguinte indagação: se o princípio
constitucional, ora em análise, garante o poder de iniciativa, exclusivamente,
ao Supremo Tribunal Federal, não estaríamos diante de uma usurpação
de poderes, de forma oblíqua, mediante proposta de Emenda Constitucional,
por parte do Poder Executivo, na tentativa de disciplinar, até
mesmo de forma discriminatória, o regime dos subsídios dos desembargadores
e juízes dos Estados, por via de alteração do inciso XI do art. 37 da
Constituição?
No meu entender, não padece dúvida que a iniciativa legislativa da emenda
proposta pelo Poder Executivo acaba por usurpar prerrogativa constitucional
concedida ao Poder Judiciário para estabelecer a sua própria disciplina remuneratória,
observado o critério nacional da Magistratura em escala descendente
a partir dos subsídios dos ministros do Supremo Tribunal Federal.
11. Lúcio Bittencourt, em clássica e pioneira obra em nosso Direito,
escreve que “a inobservância das fórmulas estabelecidas pela Constituição para a
feitura das leis determina a sua inconstitucionalidade e, em conseqüência desta, a
sua inexistência”.12
11 Idem, p. 97.
12 O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis, Rio de Janeiro: Ed. Rev. Forense, ed. 1949, p. 133.
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
89
Francisco Campos, em parecer que examinava, como parlamentar, a
indispensabilidade de uma norma constitucional de elaboração de leis,
deixou expresso: “A provisão constitucional de que constem regras de processo,
de prescrições de formalidades aos atos de um poder, é, por si mesma e em
virtude do instrumento a que adere, uma regra essencial, não se podendo
admitir, a não ser que se queira aniquilar o sistema da Constituição escrita,
prova ou razão em contrário à presunção que ela tem, por si, por força, não
do seu conteúdo, mas da sua forma ou instrumento em que ela se contém, de
ser um preceito indispensável à garantia e segurança de um interesse público.
Tais provisões não são, pois, como bem o diz Cooley, simples regras de
ordem, mas de proteção ao interesse público e, como tais, insusceptíveis de
serem dispensadas”.13
O saudoso e querido professor José Frederico Marques ensina que há
“um procedimento próprio para a formação de lei, cujas linhas mestras vêm
traçadas e previstas nos textos constitucionais. Infringir o modus faciendi
disposto na Constituição, para compor a lei, leva conseqüentemente à confecção
de um quid sem forma nem figura de ato legislativo, pelo que o preceito,
ali contido, se torna informe e desprovido de qualquer forma preceptiva. Nem
poderia, aliás, de outro modo concluir-se, uma vez que a violação desse procedimento
atinge a própria ordem constitucional e viola, portanto, o que o
ordenamento jurídico apresenta como basilar e fundamental na construção de
seus preceitos”.14
De outra parte, José Frederico Marques, citando Rui Barbosa, lembra
que é “dogma cardeal do constitucionalismo americano” — em que o nosso se
moldou — “a invalidade da ação dos poderes políticos fora do círculo dos textos
constitucionais”.15
Aliás, o saudoso e notável publicista Seabra Fagundes, ao falar na “invasão
de funções”, diz que “é absoluta quando se dá invasão de atribuições de
órgãos doutro ramo funcional” e “na invasão absoluta, a incompetência é irremediável.
Os atos são inválidos por infringirem princípio fundamental da organização
política, como seja a divisão das funções e poderes públicos por entidades
que controlam reciprocamente”.16
13 Direito Constitucional, vol. I, Rio de Janeiro: Ed. Freitas Bastos, 1956, p. 395.
14 Jornal O Estado de S.Paulo, ed. de 16.4.1961, artigo sobre “Iniciativa de Leis sobre Aumentos Estipendiários”.
15 Idem.
16 O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 2ª ed., nº 31, Rio de Janeiro: Ed. Konfino, p. 86.
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
90
12. A quebra do poder de iniciativa consagrado na Constituição leva,
inexoravelmente, à nulidade, e “o ato nulo, como dizia Hamilton, por oposto à
Constituição, ”nunca se poderá validar”.17
Retomando o assunto, José Frederico Marques observa que a promulgação
de qualquer ato normativo, em que não foi observada a iniciativa privativa,
não tem o condão de sanar o vício existente, pois, se tal fosse possível, de
todo inútil seria prever a Constituição a iniciativa reservada. A norma constitucional
estaria “funcionando como a quinta roda do carro, por inútil e desnecessária”.
18
13. Existe, assim, quando a própria Constituição reserva a iniciativa legislativa
a um determinado Poder do Estado, uma garantia expressa em procedimento
próprio para a formação do ato normativo e não se há de olvidar
que foi em “formas” e “ritos” que se moldaram as garantias da salvaguarda do
interesse público e dos direitos individuais abrigados pelo Constitucionalismo
moderno.
Da ofensa à Constituição
14. Otto Bachof, em sua conhecida dissertação, oferece o seguinte conceito:
“Por Constituição em sentido material entende-se em geral o conjunto das
normas jurídicas sobre a estrutura, atribuições e competência dos órgãos supremos
do Estado, sobre as instituições fundamentais do Estado e sobre a posição do cidadão
no Estado”.19
A alteração do texto constitucional, de seu turno, pode vir a infringir, formal
ou materialmente, disposições da Constituição. Haverá infringência material
quando a emenda “se propõe alterar disposições da Constituição contrariamente à
declaração de imodificabilidade destas inserta no documento constitucional”.20
Em face de nossa Constituição, toda emenda que se proponha a alterar as
denominadas cláusulas pétreas (art. 60, § 4º) infringe, de forma material, a
Carta Constitucional.
17 Apud JOSÉ FREDERICO MARQUES, loc. cit.
18 Jornal O Estado de S.Paulo, ed. de 7.5.1961, p. 34,
19 Normas Constitucionais Inconstitucionais?, Coimbra: Ed. Almedina, 1994, p. 39.
20 Idem, p. 52.
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
91
O mestre germânico, de outra parte, faz uma importante advertência:
“... o problema das normas constitucionais inconstitucionais se põe, menos em
períodos de uma vida constitucional normal do que em períodos de mudança
política radical”.21
15. Otto Bachof, em outro trabalho sobre Juízes e Constituição, já citado
em outro tópico deste estudo, exorta o trabalho dos tribunais no sentido
de “restabelecer e afirmar a inquebrantável crença na soberania do Direito e
na possibilidade de um império do Direito; a crença num Direito a que estejam
submetidos não só os cidadãos, como também o Estado: o Direito como medida
do Poder”.22
Poder de reforma da Constituição
16. Dúvida não existe de que o poder de reforma é limitado pelo texto
permanente da Constituição. Trata-se de um Poder derivado ou de segundo
grau. Bem por isso, as emendas à Constituição “não podem revolucionar”, vindo
o excelso professor Goffredo Telles Júnior a ensinar: “O Poder Constituinte
Derivado não tem competência para mudar a ordenação fundamental do Estado,
fixada pelo Poder Constituinte original”.23
Canotilho expõe que “como afirma sugestivamente Zagrebelsky, ‘o poder de
revisão da Constituição baseia-se na própria Constituição; se ele a negasse como
tal, para substituí-la por uma outra, transformar-se-ia em inimigo da Constituição
e não poderia invocá-la como base de validade’”.24
Em suma, o Poder Reformador. Enfeixado em mãos do Congresso Nacional
revisor, possui poderes subordinados, como leciona o saudoso professor
Geraldo Ataliba, além de condicionados e limitados e “daí resultar absurdo o
conceito de não haver direito adquirido contra a Constituição, se não existir
primeiro uma revolução que instaure uma nova ordem constitucional antagônica
à presente ordem”.25
21 Ibidem, p. 4.
22 Ob. cit., p. 68.
23 Apud FRANCISCO DE PAULA SENA REBOUÇAS, Fim de Século e Justiça, São Paulo: Ed. Juarez de Oliveira, ed.
2002, p. 285.
24 Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra: Ed. Almedina, p. 990.
25 Idem, nota 420, p. 284.
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
92
Logo, o Poder Constituinte impede o Poder Reformador de modificar os
fundamentos que são o cerne da Carta Magna criada. Conforme doutrina
Jorge Miranda, “para além da regulamentação das formas, não raras Constituições
ocupam-se expressamente do conteúdo que a revisão pode vir a adquirir,
circunscrevendo a liberdade dos órgãos cuja competência instituem. Quer dizer:
Constituições há que prescrevem limites materiais da revisão constitucional”.26
Segundo Canotilho: “Limites expressos ou textuais são os limites previstos no próprio
texto constitucional. As Constituições selecionam um leque de matérias, consideradas
como o cerne material da ordem constitucional, e furtam essas matérias à
disponibilidade do poder de revisão”.27
Esses limites materiais expressos são denominados de cláusulas pétreas
ou de inamovibilidade.
17. Todavia, existem, também, os limites implícitos que são aqueles que
decorrem, como conseqüência lógica, dos princípios em que descansa o sistema
constitucional em seu conjunto.
18. Os limites materiais expressos na Constituição de 1988 estão compendiados
no § 4º do artigo 60:
“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais”.
Restaram consagrados, assim, princípios intangíveis, não sujeitos ao Poder
de Reforma ou revisão.
Dos direitos e garantias individuais
19. Após um momento de certa vacilação, nossa Suprema Corte acabou
por fixar o entendimento de que os direitos e garantias constitucionais, objeto
26 Manual de Direito Constitucional, 2ª ed., tomo II, Coimbra: Coimbra Ed., p. 175.
27 Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra: Ed. Almedina, p. 944.
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
93
das cláusulas pétreas compendiadas no inciso IV, § 4º, da Constituição, não
se vinculam, apenas, àqueles estampados no art. 5º do texto constitucional,
uma vez que existem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, além daqueles vigentes na ordem jurídica interna, decorrentes de
tratados internacionais aprovados pelo Estado brasileiro.28
Do sentido pleno das cláusulas pétreas
20. A existência material das cláusulas pétreas demonstra, de forma definitiva,
a limitação do Poder Reformador. Isso porque tais cláusulas estão inseridas
no próprio cerne da Constituição e, caso ocorra mudança, haverá, em
verdade, usurpação, pelo Poder de revisão, de atuação própria e indelegável
do Poder Constituinte originário.
Eis porque Jorge Miranda leciona, com precisão, que as cláusulas pétreas
têm dupla utilidade: “a de externar os princípios constitucionais, evitando ou
pondo termo às incertezas que possam formular-se acerca da Constituição material;
e, com isso, a de lhes reforçar a garantia — pois a revisão constitucional é
instrumento de garantia da Constituição”.29
Do controle da constitucionalidade
21. Logo, as emendas constitucionais de regra estão sujeitas ao
controle jurisdicional de constitucionalidade. Aliás, Canotilho ensina:
“A não-observância, pela lei de revisão, dos limites estabelecidos na
Constituição, coloca-nos perante o problema da desconformidade constitucional
das leis de revisão, problema esse que não é substancialmente
diferente do problema da inconstitucionalidade das leis ordinárias, dado
que o poder de revisão é um poder constituído e não uma novação do
poder constituinte”.30
Para Alexandre de Moraes, com fundamento na Constituição de 1988, é
“plenamente possível a incidência de controle de constitucionalidade, difuso ou
28 Conforme voto vencedor do ministro CARLOS VELLOSO na ADIN nº 939-7/DF (Ementário 1737-02), DJU de
18.3.94. Veja-se, ainda, voto do ministro CELSO DE MELLO na mesma decisão.
29 Ob. e vol. cits., p. 248.
30 Ob. cit., p. 950.
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
94
concentrado, sobre as emendas constitucionais, a fim de verificar a sua constitucionalidade
ou não, com base na análise do respeito aos parâmetros fixados
no art. 60 da Constituição Federal para alteração constitucional”.31
22. O Pretório Excelso, de forma pacífica, entende possível o controle da
constitucionalidade de emendas à Constituição: “Não há dúvida de que, em
face do novo sistema constitucional, é o STF competente para, em controle difuso
ou concentrado, examinar a constitucionalidade, ou não, de emenda constitucional
— no caso a nº 2, de 25 de agosto de 1992 — impugnada por violadora
de cláusulas pétreas explícitas ou implícitas”.32
Em outra oportunidade, voltou a afirmar: “Uma emenda emanada, portanto,
de Constituinte derivada, incidindo em violação à Constituição originária, pode
ser declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua
é a de guarda da Constituição (art. 102, I, “a”, da CF)”.33 E o eminente ministro
Celso de Mello, em seu v. voto vencedor, traz importante lição: “É preciso não
perder de perspectiva que as emendas constitucionais podem revelar-se incompatíveis,
também elas, com o texto da Constituição a que aderem. Daí, a sua plena sindicabilidade
jurisdicional, especialmente em face do núcleo temático protegido pela
cláusula de imutabilidade inscrita no art. 60, § 4º, da Carta Federal. As denominadas
cláusulas pétreas representam, na realidade, categorias normativas subordinantes
que, achando-se pré-excluídas, por decisão da Assembléia Nacional Constituinte,
do poder de reforma do Congresso Nacional, evidenciam-se como temas
insuscetíveis de modificação via do poder constituinte derivado”.34
II. Do direito adquirido
Direito adquirido. Conceito
23. A norma constitucional, ao proteger o direito adquirido, não o define
(art. 5º, inciso XXXVI).
31 Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, São Paulo: Ed. Atlas, 202, notas ao art. 60, p.
1.081.
32 ADIN nº 830-7/DF, Ementário nº 1.758-1, DJU de 16.9.94.
33 ADIN nº 939-7/DF, Ementário nº 1.737-02, DJU de 18.3.94.
34 Idem.
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
95
No entanto, a Lei de Introdução ao Código Civil o define: “consideram-se
adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como
aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida
inalterável, a arbítrio de outrem” (art. 6º, § 2º).
O artigo 5º, XXXVI, da CF
24. O art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal protege o direito adquirido,
impedindo seja atingido por lei posterior.35
25. Como se deixou assente, não só a lei, como também a emenda, estão
sujeitas ao controle da constitucionalidade.36
Portanto a expressão “lei” do art. 5º, XXXVI, “é usada em sentido
amplo, compreendendo todas as espécies normativas do artigo 59 da Constituição
Federal”, conforme expõe o professor MICHEL TEMER, recordando
que essa interpretação sistemática é avalizada pelo art. 102, I, “a”
da Carta Magna, ao dizer “que compete ao STF processar e julgar, originariamente,
a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo
federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato
normativo federal”. Assim, “quando esse artigo alude à ‘lei’, está mencionando
todas as espécies catalogadas no art. 59 da Lei Magna”. Basta que haja,
em tais espécies de atos normativos, a veiculação de “normas gerais e abstratas,
de acordo com o que já decidiu o STF”. Pensar “de outra maneira
seria imaginar que o poder constituinte originário está em permanente atividade,
sendo o seu veículo a emenda constitucional, que tudo poderia alterar,
o que é um equívoco interpretativo gravíssimo”, pois “ficaria desequilibrada
a organização social pela instabilidade da ordem jurídica”. Por
35 “A inviolabilidade do passado é princípio que encontra fundamento na própria natureza do ser humano, pois,
segundo as sábias palavras de PORTALIS, ‘o homem, que não ocupa senão um ponto no tempo e no espaço,
seria o mais infeliz dos seres, se não pudesse julgar seguro nem sequer à sua vida passada. Por essa parte de
sua existência, já não carregou todo o peso de seu destino? O passado pode deixar dissabores, mas põe termo
a todas as incertezas. Na ordem da natureza, só o futuro é incerto e essa própria incerteza é suavizada pela
esperança, a fiel companheira de nossa fraqueza. Seria agravar a triste condição da humanidade querer mudar,
através do sistema da legislação, o sistema da natureza, procurando, para o tempo que já se foi, fazer reviver
as nossas dores, sem substituir as nossas esperanças’” (VICENTE RÁO, O Direito e a Vida dos Direitos, São
Paulo: Ed. RT, ed. 1999, revista e atualizada por OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL, nº 273, p. 363).
36 O STF, no julgamento do MS nº 21,642, pelo voto condutor do eminente ministro CELSO DE MELLO, deixou
assente: “O controle de constitucionalidade tem por objeto lei ou emenda constitucional promulgada” (RDA, vol.
191/200).
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
96
fim, “nada e ninguém pode se sobrepor à Constituição, lei maior emanada
da soberania popular, que estabeleceu, ao se manifestar, as regras permanentes
do “jogo” social”.37
26. Em tais condições, não pode a Emenda à Constituição postergar, não
só a regra de independência e da separação dos Poderes, como também os direitos
e garantias individuais e, entre eles, o direito adquirido (art. 60, § 4º, III).
Do direito adquirido e da emenda à Constituição
27. Alguns entendem que não há direito adquirido contra a Constituição,
argumento que ocupa lugar comum, especialmente, quando da existência
de Emendas constitucionais que acabam por atingir o direito adquirido.
Homens de governo e parlamentares erigem tal argumento para convencer,
especialmente, pessoas não afeitas ao trato do Direito.
28. Tal argumento, ou tentativa interpretativa, não resiste a uma análise
isenta e correta da sistemática constitucional.
Razão assiste ao eminente desembargador Sena Rebouças ao proclamar:
“Entre duas Constituições não há solução de continuidade na proteção dos direitos
fundamentais que ambas preservam. Qualquer omissão ou exclusão casuística
(secundária) do texto posterior acabaria abrigada pela proteção implícita dos direitos
compatíveis com o regime constitucional adotado (art. 5º, § 2º) e, principalmente,
se fosse o caso de revogação da própria garantia constitucional, seria inócua
pela cláusula pétrea que proíbe as emendas tendentes a abolir os direitos e garantias
individuais (art. 60, § 4º, IV)”.38
Em remate final ao seu pensamento, aduz: “Uma reforma constitucional
não é ruptura, mas continuidade, ainda que permita alterações para o futuro
(portanto, não muda uma palha na integridade do direito adquirido, assim
como do ato jurídico perfeito e da coisa julgada). Uma reforma, sob o influxo dos
princípios liberais é mais do que a continuidade das instituições. É a reafirmação
dos aspectos perenes do direito, sendo o mais relevante desses aspectos o da segurança
37 Jornal Folha de S.Paulo, ed, de 3.7.2003, 1º caderno, p. A3.
38 Ob. cit., p. 295.
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
97
jurídica. E segurança jurídica é a cláusula pétrea por excelência. Não há melhor
cimento, no alicerce de cada uma dessas cláusulas de garantia da Constituição.
Nenhum valor vale o sacrifício da ordem jurídica..”.39
29. Em tais condições, a cláusula pétrea do direito adquirido, obra do
Poder Constituinte originário, deve ser respeitada pelo Poder Reformador
ou de 2º grau, e toda emenda que vier a desrespeitá-la será inconstitucional.
Para o professor Ivo Dantas, como a Emenda Constitucional é manifestação
do Poder Constituído — Poder de Reforma — e se acha integrada, nos
termos do art. 59 da Constituição, ao processo legislativo, “encontra-se obrigada
a render homenagens ao texto da Constituição, conclusão a que se chega
não por mero exercício exegético, mas, inclusive, por determinação expressa deste
mesmo texto (art. 60, § 4º)”.40
30. Inclusive, como observa o saudoso professor Celso Bastos: “Não basta,
por exemplo, uma emenda que se limite a suprimir o dispositivo constitucional
sobre o qual se calcava o portador do direito adquirido. É da própria essência
desse o continuar a produzir efeitos, mesmo depois da revogação da norma sob a
qual foi praticado”.41
31. O Constitucionalismo “implica harmonia entre o exercício do poder
político e o exercício dos direitos individuais”; e Norberto Bobbio revela esse
prisma do constitucionalismo, “como a teoria do poder político limitado pela
existência dos direitos individuais”, de modo que “a ordem total não pode ser
mudada senão por quem se coloca fora da ordem”.42
32. Daí resultar “absurdo o conceito de não haver direito adquirido
39 Idem, pp. 296/297. “As pessoas razoavelmente cultas sabem que acima, mas não fora, dos inúmeros valores
que as Constituições consagram, como valor em si, que dá assistência e garantia a todos os demais, está a
segurança jurídica. Sabem que nenhum, absolutamente nenhum valor isolado, por mais valioso que ele seja,
vale o sacrifício da segurança jurídica, que é um clima, uma postura generalizada, uma convicção firme de todos
os cidadãos, de que mesmo instituições imperfeitas devem ser respeitadas e só modificadas com escrupulosa
observância do processo estabelecido” (idem, p. 308).
40 Direito Adquirido, Emendas Constitucionais e Controle da Constitucionalidade, Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris,
ed. 1997, p. 62.
41 Apud SENA REBOUÇAS, ob. cit., p. 287.
42 Idem, nota 420, p. 284.
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
98
contra a Constituição, se não existir primeiro uma revolução que instaure uma
nova ordem absolutamente antagônica à precedente ordem”.43
33. Em conclusão irretorquível, é possível deixar expresso que não
pode o Congresso Nacional, por meio de Emenda, excluir, restringir o
direito que possa ser exercido por seu titular, ou alguém por ele, ou direito
cujo começo de exercício tenha termo prefixo, ou condição
preestabelecida inalterável a arbítrio de outrem (art. 6º, § 2º da Lei de
Introdução ao Código Civil).
III. Algumas realidades
De uma funesta realidade histórica
34. Sente-se, por parte da mídia e pela manifestação de políticos, bem
como de algumas lideranças no Parlamento e de órgãos do governo, um
desprezo pelo Poder Judiciário. Ademais, são veiculadas críticas ao Judiciário
e, também, aos magistrados. O termo “privilégios” ocupa lugar de destaque
nas críticas.
O desprezo pelo Poder Judiciário, contido em diversas críticas e iniciativas
legislativas, nos leva a recordar a séria advertência histórica feita, conforme
relata o desembargador Sena Rebouças: “Foi justamente na Alemanha de Weimar
que conhecidos sistemas diagnosticaram o maior desastre do século XX: distanciamento
dos princípios democráticos, injustiça e descrédito, arbítrio e degradação
das liberdades”.44
Campo aberto, assim, para o aparecimento do Nazismo, na década
de 1930, que tantos sofrimentos, males e degradações criou para a Humanidade.
35. Portanto, qualquer influência sobre o Poder Judiciário, minando
sua independência, não daria ao povo aquela certeza na independência e
autonomia de suas decisões. O governo não se confunde com a Justiça.
43 Ibidem.
44 Ob. cit., p. 78.
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
99
Tanto é exato que o terror instituído em França, após a Revolução liberal,
falseou e afrouxou os órgãos judiciários, mas não se atreveu a aboli-los. E o
juiz, conforme o dizia Rui Barbosa, é “a consciência da lei, que não obedece
a ninguém”.45
De outra parte, vem a pêlo, conforme citado pelo ilustre desembargador
Mário Moacyr Porto, a advertência feita por Anatole France, através
do humorado filósofo que seu gênio criou — Bergeret: “Eu não teria
muito medo das más leis se elas fossem aplicadas por juízes bons. Diz-se
que a lei é inflexível, mas eu não acredito. Não há texto que se não deixe
solicitar. A lei é morta. O magistrado está vivo. Ele tem uma grande
vantagem sobre ela”.46
Importante constatação
36. Tal desprezo ao mais independente dos Poderes, como se vê, pode
levar a funestas conseqüências.
Com efeito, em sendo a função do Estado servir à comunidade, eliminando
as desarmonias que lhe ameaçam a vida comum, fazendo dela
uma comunidade melhor, isso só será possível na medida em que se mantenha
o Poder Judiciário independente na defesa dos princípios democráticos
dessa mesma comunidade, para que tais princípios sejam mais
bem compreendidos, em função da vida comum. Aliás, o saudoso professor
LINDSAY, da Universidade de Oxford, já fazia, em 1943, tão sábia
advertência: “abrir mão de formulações de princípios democráticos ou de declarações
de direitos porque são abstratos é preparar o caminho para um contrasenso
sombrio e sinistro sobre o espírito de um povo e que inspirou muitos dos
discursos de Hitler”.47
37. Vã e sem qualquer possibilidade de efetiva autonomia e independência
do Poder Judiciário seria a sua simples afirmação de existência constitucional
sem que a ela correspondessem garantias aos seus membros no exercício
de seus cargos.
45 OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL, ob. cit., p. 25.
46 Idem, p. 10.
47 Apud OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL, ob. cit., p. 25.
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
100
As Constituições, quando outorgam garantias aos magistrados, estão visando
à própria eficiência da Justiça, e não ao interesse dos julgadores. O professor
e um dos mais importantes líderes do Partido Trabalhista inglês, em todos os
tempos, Harold Laski, afirmava: “é óbvio que quanto maior for a independência dos
juízes tanto mais seguras serão as possibilidades de realizar sua função”.48
Da falácia do chamado “governo dos juízes”
38. Na época moderna, é indiscutível uma interdependência entre Legislativo
e Executivo, no aprimoramento das atividades próprias do Estado
Democrático Moderno.
Da interdependência entre Legislativo e Executivo não participa o Judiciário,
pois as funções deste último não podem ser retiradas. São incompatíveis.
O Judiciário é o guardião máximo da Constituição e das leis. Enfim, da ordem
jurídica. Há a supremacia constitucional do Judiciário.49
O chamado princípio da supremacia do Judiciário encontra sua mais
acentuada evidência no exercício do controle jurisdicional das leis e dos atos
do Poder Público.
39. Contra essa tendência moderna do Direito Constitucional, haurida
na prática constitucional americana, se levantaram vozes, temendo o
que chamavam “governo dos juízes”. Entre elas adquiriu destaque Lambert,
com sua famosa tese Les Gouvernement des Juges, publicada em 1925. Hamilton,
quando da publicação de seu estupendo Federalist, já procurava
explicar o sentido exato do princípio da supremacia do Judiciário. O saudoso
professor Alfredo Buzaid bem explica essa atividade do Judiciário,
que “não constitui uma usurpação do poder; é conatural com a função de
interpretar e aplicar o direito em cada caso concreto”. Charles Evans
Hunghes observou que “longe de o exercício dessa autoridade ser uma usurpação
judicial, a sua ausência deve ser considerada uma abdicação injusta”,
48 Idem, p. 28.
49 JAMES BECK, como procurador-geral dos Estados Unidos da América, em conferência que pronunciou na Corte
de Cassação de Paris, no ano de 1922, sobre a Constituição do seu país, dizia: “os doutores da Suprema Corte
podem ser considerados como estando acima do Legislativo e do Poder Executivo. Os juízes têm o direito de dizer
ao Governo: eis a verdadeira interpretação da Constituição; eis a decisão. É a ela que deveis obediência. E ela
é sempre obedecida” (OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL, ob. cit., nº 99, p. 90).
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
101
enquanto Henri Galland acentua: “para nós a expressão “governo dos juízes”
possui uma outra significação. Indica o estádio que atingiu o sistema político
americano na evolução geral das sociedades. É quase trivial recordar hoje que
os Estados Unidos, outrora submetidos a uma organização arbitrária, se foram
racionalizando pouco a pouco; a atividade dos governantes, exercida noutros
tempos com toda a liberdade, está agora, sujeita ao Direito. Exprime-se esta
idéia, dizendo que os Estados vivem, de agora em diante, sob um regime de
legalidade”.50
40. Portanto, sem mínima procedência falar-se em “governo dos juízes”. O
Poder Judiciário, em sua atividade constitucional, permanece sobranceiro em
defesa da ordem jurídica do Estado. Em suma, através dele se tem por garantida
a supremacia constitucional do princípio da legalidade.
Das garantias da Magistratura
41. A autonomia e a independência do Judiciário seriam vãs, se a elas não
correspondessem garantias fundamentais aos seus membros no exercício dos
seus cargos, tais como a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade
de seus vencimentos, ou subsídios. Quando as Constituições outorgam tais
garantias — e não “privilégios”, como muitos de má-fé procuram “apelidá-los”
— aos magistrados, visam à própria eficiência da Justiça, e não ao interesse
pessoal dos juízes.
42. As garantias da vitaliciedade e da inamovibilidade, uma vez conjugadas,
criam para o juiz aquela situação estável que, no dizer de Seabra
Fagundes, “constitui elemento típico essencial da existência do órgão judicante
como poder no mecanismo do Estado”; e a irredutibilidade dos vencimentos
tem por escopo, conforme esclarece o excelso José Frederico Marques, “pôr
o juiz a salvo de perseguições governamentais traduzidas em restrições de
ordem econômica”.51
43. Há uma verdade sabida e quase sempre desprezada:
50 OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL, nº 97, os. 90/91.
51 Idem, p. 29.
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
102
“O que se faz pela Magistratura não entra na categoria de gastos, mas
de investimento”.52
44. Bem por isso, a remuneração digna dos magistrados é garantia de
preservação da dignidade e da independência do próprio Poder Judiciário.
45. O eminente ministro Saulo Ramos, em artigo jornalístico sob o título
Juízes e Lixeiros, com o seu estilo brilhante em defesa da Magistratura,
recorda que, “na defesa de seus direitos, a sociedade sabe que precisa de magistrados
cultos e tranqüilos. Sabe até por intuição. Na Inglaterra, o juiz ganha bem e,
quando acha insuficientes seus vencimentos segundo os padrões do local onde exerça
a função, ou em face do aumento de seus encargos familiares, tem direito de requerer
suplementação individual. E recebe. Nos Estados Unidos da América, os vencimentos
dos juízes, desde a Independência, foram considerados fundamento de segurança
para a população. Quando se discutia essa matéria, Alexander Hamilton,
em sua obra fundamental ‘O Federalista’, advertiu que ‘o controle sobre os meios
de subsistência de um homem equivale ao controle sobre a sua vontade’.”
Na época em que foi escrito o artigo jornalístico, discutia-se a questão
concernente à aposentadoria dos magistrados, em virtude do Projeto que se
transformou na Emenda Constitucional nº 20/98.
O excelso constitucionalista recordava que ao magistrado tudo é proibido:
“não pode fazer mais nada, não pode receber de outras fontes, não pode comerciar,
não pode ser sócio de coisa alguma, não pode, não pode, não pode.” Ao
magistrado ”somente se permite, além de suas funções, o exercício de um cargo de
professor, precisamente a atividade cujos vencimentos constituem, ironicamente,
verdadeira espoliação do trabalho intelectual.”
Naquela época, Saulo Ramos observava — observação de total atualidade
na época atual de nova mudança nas regras da Previdência — que “os magistrados
pleiteiam o mínimo: que não se alterem as regras de suas aposentadorias.
Ou menos: que a lei geral de previdência seja a eles aplicada no que couber, ressalvando,
com esse pouco, a esperança de o legislador, no futuro, não despojá-los
daquele mínimo. Nem sei se isso irá assegurar-lhes algo, com tantos discursos classificando
a ressalva como ‘privilégio’”.
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
52 EDGARD DE MOURA BITTENCOURT, O Juiz, Rio de Janeiro: Ed. Jurídica, 1966, p. 144.
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
103
Infelizmente a preocupação se fez realidade. O atual governo, voltando
ao discurso insustentável do “privilégio”, ataca o regime de aposentadoria
dos magistrados e cria, ademais, com o beneplácito do relatório da
Câmara dos Deputados sobre o Projeto de Emenda Constitucional, uma
odiosa e insustentável inconstitucionalidade sobre os subsídios dos juízes,
fazendo da Magistratura estadual uma Magistratura inferior, de segunda
classe.
No artigo jornalístico, Saulo Ramos, uma vez que os críticos “não apontam,
porém, qual o privilégio deferido à Magistratura”¸ interpela: “Qual? Digam
um só! Essa história de falar em ‘ofensa ao senso de justiça’ e ‘ética republicana’ não
passa de frase empolada, sem conteúdo concreto, sem verdade definida, porque não
aponta o fato nem a vantagem que em privilégio se constituiriam”.53
A mídia e o Judiciário
46. Nos tempos atuais — como quase sempre —, parte substancial da
mídia, por intermédio dos seus meios de comunicação, tem oferecido o espetáculo
de má vontade e ausência de informação correta, no que tange ao
Poder Judiciário e, por conseqüência, à Magistratura.
São críticas, muitas vezes, sem a mínima procedência, trazendo distorções,
fruto do desconhecimento e ignorância da indiscutível importância
53 Lembrava, em seu estupendo artigo, que, apoiando esse pernosticismo, um jornal de São Paulo, em editorial,
na época, “sustentou que a tese, a garantia de aposentadoria para o magistrado como condição de julgamentos
isentos, ‘valeria para o médico, que precisa de tranqüilidade para operar, o engenheiro, para projetar e calcular
estruturas, para o padre, para confessar e confortar, para o escrevente, para não errar ortografia e sintaxe, ou
para o lixeiro para não deixar restos para trás’. Eu acrescentaria mais um ‘para’, que seria ‘para’ um jornalista
não escrever tanta bobagem e tanto ‘para’. O cirurgião pode cobrar o que quiser, fora do SUS; o engenheiro,
a mesma coisa — e nem SUS tem a limitar seus ganhos; o padre, por definição, desfruta de paz de espírito; o
escrevente que errar na sintaxe é substituído; e, finalmente, o lixeiro, por mais digna que seja a profissão, como
todas as demais, não precisa de ciência alguma para varrer o chão. Nem de biblioteca, nem de fatos sociais,
além do seu próprio”.
“É preciso, pois, meditar sob o ponto de vista social e no interesse do povo, sobre a diferença que existe entre a
vontade do juiz e a vontade do lixeiro. Ou se o direito dos cidadãos pode ser comparado ao lixo deixado para trás”.
O texto do antigo ministro da Justiça foi enviado, pelo juiz federal dr. ANTONIO CARLOS FACIOLI CHEDID para
conhecimento dos juízes de Portugal. Em reposta, os juízes portugueses deixaram a seguinte mensagem: “Nós,
juízes portugueses, que temos um estatuto de jubilação aceitável, conseguido ao fim de um debate muito aceso
e que chegou a ter alturas muito difíceis no relacionamento do poder político com a Magistratura, não podemos
deixar de apoiar os nossos colegas brasileiros na justíssima aspiração por um estatuto de aposentadoria
condigno, pedra essencial de um estatuto de independência da Magistratura, que, por sua vez, é factor de
primeira grandeza num Estado de Direito. O que é que o legislador pretende? Uma Magistratura digna, forte
e independente, num Estado de Direito ou um corpo de funcionários servis e patéticos...”
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
104
do Poder Judiciário e da Magistratura na vida de cada um dos cidadãos
brasileiros.54
47. Nos debates sobre a Reforma da Previdência, vemos políticos e jornalistas
a reiterarem não apenas a infundada afirmativa de “privilégios da Magistratura”,
como também a proporem um sinistro e sombrio futuro à Magistratura
brasileira: colocar amarras ao incentivo de levar homens competentes
e probos, no futuro, a se transformarem em magistrados. Chegaram ao cúmulo
de propor, não só para os futuros magistrados, como também para aqueles
que estão em atividade, sem atingir o tempo de exercício e de contribuições,
a aposentadoria de R$ 2.400,00! Muito menos do que ganham, na atualidade,
com recolhimento previdenciário, pois calculado com base em seus subsídios
vigentes. No fim da carreira, quando se aposentarem, após tantos anos
no desgastante ofício, perceberão menos do que ganhavam, quando passaram
a integrar a Magistratura!
Santo Deus, que absurdo!
Sem falar na proposta de redução dos subsídios dos juízes em exercício
— lançando às urtigas o princípio constitucional da irredutibilidade —, bem
como dos proventos de aposentadoria dos magistrados na inatividade, deitando
por terra a garantia do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito,
que bem demonstram a impossibilidade jurídica de redução de tais subsídios
e proventos.
São temas sombrios e sinistros que afloram no ideário dos corifeus de
uma reforma da Previdência, “talvez com o objetivo de chocar, embora sejam
simplesmente inconstitucionais”.55
48. Já se perguntou, certa feita: “Teria a Magistratura brasileira conhecido
tantos vultos de porte, se estivessem os juízes sujeitos à demissão, à remoção, à
compressão financeira? Quantos deles teriam abandonado a instituição para conservarem
a independência? Quantos teriam abandonado a independência para
conservarem o cargo?”.56
54 “A maior parte da crítica é política e superficial, para não dizer indigna. Esses críticos improvisados nada sabem
da vida judiciária, restando-lhes a resposta de APELES: Ne, sutor, ultra crepidam; um sapateiro não deve ir além
das sandálias” (SENA REBOUÇAS, ob. cit., p. 84.)
55 SENA REBOUÇAS, ob. cit., p. 303.
56 Idem.
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
105
De uma verdade sabida, mas sempre esquecida
49. Em toda discussão sobre a Reforma da Previdência, tanto o governo,
como alguns parlamentares, deveriam recordar lição deixada por um
saudoso, honrado, probo e competente homem público, dr. Ildo
Meneghetti.57
Da desintegração do Estado Federal
50. O relatório da Câmara dos Deputados sobre o Projeto de Emenda
Constitucional nº 40/03, ao tratar do denominado subteto, acabou por
propor o absurdo: desintegrou a Federação e colocou o Poder Judiciário dos
Estados em total desarmonia com o regime remuneratório da Magistratura
Federal. Com efeito, limita o subsídio mensal dos desembargadores dos Tribunais
de Justiça a 75% do subsídio mensal, em espécie, dos ministros do Supremo
Tribunal Federal.
A sistemática remuneratória estabelecida pelo Poder Constituinte
originário da verticalidade interna da Magistratura Nacional foi destruída.
51. Em demonstração dessa realidade, o Tribunal de Alçada Criminal de
São Paulo elaborou a seguinte tabela explicativa:
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
57 Em trecho de mensagem encaminhada à Assembléia Legislativa do dinâmico Estado do Rio Grande do Sul,
acolhendo integralmente representação de seu Tribunal de Justiça, dizia o então governador ILDO
MENEGHETTI: “a solidez do regime democrático, que nossa Carta Magna consagrou, vê um dos seus mais
fortes esteios no funcionamento, liberto de qualquer provocação, desse órgão da soberania nacional, que
é o Poder Judiciário. Prestigiá-lo, enobrecê-lo e facultar-lhe condições de ação de todo favoráveis é, não
apenas ditame constitucional, mas mandamento cívico, ao qual obedeço como cidadão e como chefe do
Poder Executivo. E, no patriotismo dos integrantes do nobre Poder Legislativo — outro alicerce vigilante de
nossa Democracia — a mesma convicção de todo o nosso povo pulsa e exige resguardo à atividade
jurisdicional e àqueles que a essa se vinculam. A irredutibilidade dos vencimentos da Magistratura riograndense
garantida pela Constituição — tem sido, sem dúvida, maculada pela permanente e desordenada
elevação do custo de vida, dificultando o trabalho criador dos senhores magistrados que, desde as mais
distantes comarcas interioranas até a cúpula jurisdicional da capital, têm assegurado o império do Direito
e das liberdades públicas. O politizado povo do Rio Grande deseja que seus homens de lei não tenham
peias de qualquer ordem — inclusive econômicas — no exercício de sua missão, e, ao encaminhar o incluso
projeto de lei, que é oriundo das associações que representam as nobres classes por ele abarcadas, façoo
sem análise dos valores prefixados, em sinal de respeito e homenagem a essas nobres entidades e ao
critério no qual se embasam na busca desse reajustamento” (apud OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL, ob.
cit., os. 87/88).



Cálculo demonstrativo (*)


Situação Vigente
(CF, art. 93, inc. V)

Supremo Tribunal Federal
R$ 15.000,00

Superior Tribunal de Justiça
R$ 14.250,00

Tribunais Regionais Federais
e Tribunais dos Estados
R$ 13.537,50

Tribunais de Alçada
R$ 12.860,63

Juízes federais e dos Estados
R$ 12.217,59




Sistema Modificado
(PEC nº 40)

Supremo Tribunal Federal
R$ 15.000,00

Superior Tribunal de Justiça
R$ 14.250,00

Tribunais Regionais Federais
e Tribunais dos Estados
R$ 13.537,50

Juízes federais
R$ 12.217,59

Tribunais de Justiça dos Estados
R$ 11.250,00

Tribunais de Alçada
R$ 10.687,50

Juízes dos Estados
R$ 10.153,13

(*) O subsídio-teto e os patamares dele decorrentes foram fixados arbitrariamente, apenas
para efeito demonstrativo.


CONCLUSÃO: Desprezada a sistemática vigente, a Justiça dos Estados tornar-se-á, sem
nenhuma razão para tanto, Justiça de segunda categoria, malgrado seja um
dos órgãos do Poder Judiciário Nacional (CF, art. 92).


52. Como fecho, nesta parte do presente estudo, cumpre recordar:
“Não se deve quebrar a tradição só para fazer qualquer coisa diferente
do passado”, disse Alessandro Groppali, pois, para ser acolhido, o
novo deve ser verdadeiro e conter os elementos que constroem, não
apenas os que servem para destruir”.58
58 SENA REBOUÇAS, ob. cit., p. 316.
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
107
IV. Do direito à aposentadoria
A lição de Francisco Campos
53. Francisco Campos, em conhecido e fundamentado parecer, esclarece
que o direito à aposentadoria “se adquire no momento em que se integram os
elementos exigidos por lei para que o funcionário faça jus à sua concessão”, isso
porque,
“no momento em que o funcionário reúne os requisitos exigidos pela
lei para que ele possa desfrutar do benefício da inatividade remunerada,
estabelece-se entre ele e o Estado uma relação jurídica de conteúdo concreto
e definido ...”
e
“quando se cumprem todas as condições para que o funcionário possa
aposentar-se, configura-se para ele o direito adquirido à aposentadoria;
não importando que ele não exerça desde logo esse direito. O exercício
do direito não cria o direito; este, ao contrário, é que autoriza,
legitima e torna possível o seu exercício”.59
Em suma:
“O direito à aposentadoria nasce, portanto, no momento em que se
verificaram todos os elementos de que a lei faz depender a sua concessão.
Nesse momento, o funcionário adquire um direito contra o Estado,
ou o direito de ser colocado na inatividade com as vantagens asseguradas
na legislação em vigor no tempo em que o direito foi adquirido”
... “Os fatos consumados sob a vigência de uma lei continuam a
produzir sob a vigência da lei posterior os efeitos que lhe eram atribuídos
por aquela”.60
59 Direito Administrativo, vol. II, Rio de Janeiro, Ed. Freitas Bastos, ed. 1958, os. 130/131).
60 Idem.
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
108
Lei ou emenda constitucional novas não poderão atingir, pois, o direito
adquirido à aposentadoria, mediante o preenchimento das condições ou requisitos
exigidos pela lei vigente à época em que o funcionário cumpriu os
requisitos por ela exigidos.
Cita, em abono de seu entendimento, antigo aresto do colendo Supremo
Tribunal Federal no sentido de que “a simples circunstância de não haver o
oficial exercido o direito que lhe competia não tira a esse a qualidade de direito
adquirido”, bem como r. parecer do ministro Hahnemann Guimarães, como
consultor-geral da República:
“...Se, ao aparecimento da obrigação, sobrevier uma lei nova, essa não
modificará as condições em que a obrigação se constituiu”.61
Esclarece, por fim, tratar-se de entendimento sufragado por Berthélemy,
Duguit e Jèze.62
Do entendimento do STF
54. O Supremo Tribunal Federal, ao manter, em Recurso Extraordinário,
acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, deixou assente:
“Considerar como requisito para a aposentadoria o pedido do interessado seria
confundir a noção de direito com a de seu exercício”.63
Igual entendimento consta nas decisões estampadas na Revista Forense,
vols. 216/218 e 187/257, bem como no v. acórdão do Pretório Excelso no
RE nº 62.361: “Se, na vigência da lei anterior, o servidor preenchera todos os
requisitos exigidos, o fato de, na sua vigência, não haver requerido a aposentadoria
não o fez perder o seu direito, que já estava adquirido”.64
Pela importância que encerra, cabe transcrever o v. voto do saudoso e
excelso ministro Luiz Galloti sobre o assunto:
“Se, na vigência da lei anterior, o impetrante preenchera todos os requisitos
61 Ibidem, p. 141.
62 Ob. e vol. cits., pp. 142 e 146.
63 RDA, vol. 55/190.
64 DJU, de 27.12.66, p. 5.547.
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
109
exigidos, o fato de, na sua vigência, não haver requerido a aposentadoria,
não o fez perder o seu direito, que já estava adquirido. Um direito
adquirido não se pode transmudar em expectativa de direito, só porque o
titular preferiu continuar trabalhando e não requereu a aposentadoria
antes de revogada a lei em cuja vigência ocorrerá a aquisição do direito.
Expectativa de direito é algo que antecede à sua aquisição; e não pode ser
posterior a esta. Uma coisa é a aquisição do direito; outra, diversa, é o
seu uso ou exercício. Não devem as duas ser confundidas. E convém ao
interesse público que o não sejam, porque, assim, quando pioradas pela
lei as condições de aposentadoria, se permitirá que aqueles eventualmente
atingidos por ela, mas já então com os requisitos para se aposentarem
de acordo com a lei anterior, em vez de o fazerem imediatamente, em
massa, como costuma ocorrer, com grave ônus para os cofres públicos,
continuem trabalhando, sem que o Tesouro tenha de pagar, em cada
caso, a dois; ao novo servidor em atividade e ao inativo”.65
Parecer da então Consultoria-Geral da República
55. O professor Adroaldo Mesquita da Costa, como consultor-geral da
República, no exame do § 1º do art. 177 da Constituição Federal de 1967,
teve a oportunidade de acentuar tratar-se de dispositivo claro, não sujeito a
qualquer dúvida, isto é, estando a demonstrar que “os servidores que satisfizerem
as condições previstas aposentar-se-ão com os direitos e vantagens da legislação
vigente antes da atual Constituição”, quando “se aposentarem”.66
Da jurisprudência sumulada do STF
56. Como está em v. voto do ministro Moreira Alves, a jurisprudência do
Pretório Excelso é, de há muito, firme no sentido de que “o servidor público, ao
aposentar-se ou reformar-se, tem direito a ver os seus proventos colocados em conformidade
com a legislação vigente ao tempo em que preencheu os requisitos
necessários para requerer a aposentadoria voluntária ou a reforma...”.67
65 DJU, de 16.6.1965, p. 1.431.
66 Parecer 614-H, in DJU, de 17.1.1968, p. 565.
67 RTJ, vol. 94/773-774.
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
110
Daí o enunciado na Súmula nº 359 do colendo Supremo Tribunal Federal:
“Ressalvada a revisão prevista em lei, os proventos da inatividade regulam-
se pela lei vigente ao tempo em que o militar, ou servidor civil,
reuniu os requisitos necessários.”
A expressão contida na redação primitiva do verbete “inclusive a apresentação
do requerimento quando a inatividade for voluntária” foi retirada do texto
sumulado, como decidido nos Embargos no RE nº 72.509.68 Assim entendeu
o Pretório Excelso, conforme anota Roberto Rosas, “porque a afirmação do
direito à aposentadoria, conduz ao direito adquirido. Se já houve a aquisição desse
direito, não pode estar condicionado a outra exigência”.69
Síntese da questão
57. Em síntese de tudo o que foi exposto, leciona o saudoso professor Hely
Lopes Meirelles: “O direito à aposentadoria, consoante vem decidindo reiteradamente
o Supremo Tribunal Federal, adquire-se com o preenchimento dos requisitos
exigidos pela lei da época, de modo que, se o funcionário não a requereu na vigência
desta, a sua situação não se alterará pela edição de lei modificadora”.70
Do regime constitucional anterior à Emenda nº 20/98
58. Portanto, todos os magistrados, independentemente dos cargos por
eles ocupados, na atualidade, desde que tenham preenchido os requisitos necessários
à aposentadoria, antes da Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.1998,
têm o direito adquirido de se aposentarem sob a regência do regime instituído
pela primitiva redação do inciso VI do art. 93 da Constituição Federal:
“VI – a aposentadoria com proventos integrais é compulsória por invalidez
ou aos 70 (setenta) anos de idade, e facultativa aos 30 (trinta) anos
de serviço, após 5 (cinco) anos de exercício efetivo na judicatura.”
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
68 RTJ, vol. 64/408.
69 Direito Sumular, 5ª ed., São Paulo: Ed. RT, 1990, p. 150.
70 Direito Administrativo Brasileiro, 14ª ed., São Paulo: Ed. RT, 1989. p. 387.
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
111
59. Na conformidade do dispositivo então vigente, havia um único limite
para a aposentadoria voluntária, além dos trinta anos de serviço: o exercício
efetivo por cinco anos na judicatura. Judicatura esta não vinculada ao exercício
de determinado cargo, por exemplo, em Tribunais Superiores.
“Judicatura”, no dispositivo constitucional originário, foi empregada em
termos gerais.
O legislador constituinte, se tivesse a intenção de fixar o limite de cinco
anos vinculado ao cargo em que o juiz fosse se aposentar, o teria dito expressamente.
Por exemplo: “após 5 (cinco) anos de exercício efetivo da judicatura no
cargo em que se dará a aposentadoria”.
Evidentemente o intuito do legislador constituinte, ao falar em “judicatura”,
de forma geral, assim o fez em virtude das situações especiais da nomeação
de membros do Ministério Público ou de Advogados que, somente a partir de
suas respectivas nomeações, passavam ao exercício efetivo da “judicatura”.
60. O termo “judicatura” sempre esteve ligado à função de julgar, própria
e exclusiva da Magistratura. Inclusive se tendo presente que o vocábulo
tem a sua origem etimológica no verbo latino “judicare”, que deu origem, no
idioma pátrio, ao verbo “julgar”. O Dicionário Houaiss lembra, inclusive, que,
para exprimir o poder de julgar, “de que se acha investido o juiz, havia no
latim medieval o vocábulo ”judicatura”.
61. Na época em que vigente, em sua redação original, o inciso VI do art.
93 da Constituição da República, alguns procuraram interpretar o dispositivo
em harmonia com aquele que limitava em 65 anos a idade para a nomeação
de cargos nos Tribunais Superiores. E, assim, intuíam que os cinco anos haveriam
de ser amalgamados ao inciso VI do art. 93, isto é, “judicatura” por cinco
anos no cargo de desembargador ou ministro.71
71 Aliás, o Tribunal de Contas da União, no julgamento do processo nº TC 009.525/90-4, de interesse da juíza
ORLANDA LUIZA DE LIMA FERREIRA, nomeada para o cargo de juíza do Tribunal Regional Federal da 1ª Região,
após o advento da Constituição de 1988, decidiu, tendo como precedente acórdão do Plenário: “Não vejo lógica
em impor a exigência do qüinqüênio ora em debate aos Juízes de carreira que, ao longo dos anos, desempenharam
suas respectivas funções e que, por méritos, foram alçados, mediante nomeação, a cargos mais
elevados da Justiça”. De seu turno, o Plenário daquele Sodalício, em resposta a consulta a ele formulada,
decidiu responder que o ministro do TST “que contar 30 anos de serviço e que tenha mais de cinco anos de
exercício efetivo na judicatura, tem direito à aposentadoria facultativa, não lhe sendo exigível, para tanto, ter
permanecido mais de cinco anos no cargo de ministro” (Decisão nº 114/92, DOU, de 9.4.92). Daí haver
considerado “legal o ato de aposentadoria da Juíza, por estar de acordo com o preceito constitucional
supracitado e em conseqüência com a orientação deste Tribunal sobre a matéria”.
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
112
Tal interpretação não poderia sustentar-se.
Em primeiro lugar, por se tratar do exercício do direito à aposentadoria,
a norma possui caráter singular, não sendo possível dar-se interpretação que
restrinja o alcance do direito nela previsto.
Jorge Miranda bem assinala que “a nenhuma norma pode dar-se uma interpretação
que lhe retire ou diminua a razão de ser”, ou melhor, “a uma
norma fundamental tem de ser atribuído o sentido que mais eficácia lhe dê”,
pois “interpretar a Constituição é ainda realizar a Constituição”.72
De seu turno, o professor Canotilho sintetiza o princípio da máxima
efetividade na interpretação constitucional na seguinte regra “a uma norma
constitucional deve ser atribuído sentido que maior eficácia lhe dê”.73
62. Portanto, diante de tais regras de hermenêutica constitucional, o
termo “judicatura” somente poderia ser interpretado no seu sentido próprio e
geral: tempo de Magistratura, independentemente do cargo em que o magistrado
adquiriu o direito de aposentar-se, uma vez cumpridos os requisitos
legais. Não caberia, assim, ao intérprete restringir o alcance da expressão “judicatura”
contida no texto constitucional.
Importante conclusão
63. Em tais condições, entendo que os atuais ministros dos Tribunais
Superiores, antes desembargadores dos Tribunais de Justiça estaduais e dos
Tribunais Regionais Federais, que preencheram os requisitos para a aposentadoria
e contando mais de cinco anos de judicatura, antes do advento da Emenda
Constitucional nº 20/98, poderão aposentar-se sob o regime jurídico-constitucional
implantado pelo art. 93, VI, da Constituição Federal, em sua redação
original.
Não se encontram sujeitos à incidência do disposto no art. 40, § 1º, da
Carta Magna, com a redação que lhe deu a Emenda Constitucional nº 20/98.
Quando do advento da Emenda Constitucional nº 20/98, havia uma situação
jurídica consolidada, a respeito do direito adquirido à aposentadoria,
72 Manual de Direito Constitucional, 3ª ed., tomo II, Coimbra: Ed. Coimbra,1996, p. 260.
73 Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª ed., Coimbra: Ed. Almedina, 1998, p. 1149.
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
113
sendo impossível a sua ofensa por força de efeito retroativo da referida Emenda.
Inclusive o art. 3º, caput, da Emenda Constitucional nº 20/98 manteve,
como não poderia deixar de manter, o direito subjetivo à aposentadoria
dos servidores públicos que “tenham cumprido os requisitos para a
obtenção destes benefícios, com base nos critérios da legislação então vigente”.
Os critérios de aposentadoria dos magistrados vinham regulados no art.
93, VI, que tratava, especialmente, da aposentadoria facultativa por tempo
de serviço.
V. Dos proventos da aposentadoria
Sua natureza jurídica
64. “O provento do aposentado tem a mesma natureza jurídica do vencimento,
deste sendo uma continuação ou um prolongamento”.74
Na Espanha, segundo Royo-Villanova, o provento da aposentadoria é
“una continuación del estipendio; una prolongación del sueldo” e nos Estados
Unidos da América, “as vantagens da aposentadoria são agora consideradas não
como ato de caridade mas como um defferred wage (ou a form of deferred compensation)
a que tem direito o empregado”.75
Da obrigação do Estado
65. A obrigação do Estado, ao conceder a aposentadoria, é bem explicitada
por Abreu de Oliveira, ex-professor da Faculdade de Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro e com a sua autoridade de antigo
diretor do Tribunal de Contas da União: “A obrigação, que o Estado assume, de
continuar a prover a subsistência do funcionário, desligando-o do serviço, corresponde
ao resultado prático perseguido, a causa, a conseqüência, o efeito jurídico,
o conteúdo mesmo, do ato”.76
74 J.E. ABREU DE OLIVEIRA, Aposentadoria no Serviço Público, Rio de Janeiro: Ed. Freitas Bastos, ed, 1970, p. 149.
75 Idem, p. 150.
76 Ibidem, p. 9.
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
114
Não há falar-se em aposentadoria “se não há provento ou pensão, isto
é, a ‘remuneração dos serviços prestados’, a par da cessação do exercício do
cargo.” 77
Da intangibilidade do direito adquirido
66. O ato de concessão da aposentadoria faz nascer um direito adquirido
intangível.
O provento da aposentadoria consiste numa remuneração por serviços
prestados, por fatos já consumados, e, assim sendo, está representado
em um crédito contra o Estado, estipulado e reconhecido no ato de aposentadoria.
67. Para o colendo Supremo Tribunal Federal, conforme v. voto condutor
do saudoso e notável ministro Luiz Gallotti, “o juiz, depois de aposentado,
estará protegido, não pela irredutibilidade de vencimentos que ampara os magistrados
em atividade, mas pelo preceito constitucional que manda respeitar o direito
adquirido e que é uma garantia comum a todos os funcionários”.78
68. Na conformidade da lição de Gabino Fraga, o provento de aposentadoria
“incorpora-se no patrimônio do funcionário”, enquanto para Barros Júnior:
“os proventos assim fixados, são irrevogáveis, isto é, não podem ser modificados
senão em benefício do aposentado”.79
Rafael Bielsa ensina tratar-se de um direito subjetivo do aposentado
concernente às pensões e “que os proventos não podem ser reduzidos porque
resultam de contribuições”.80
69. Em tais condições, o magistrado aposentado não poderá sofrer qualquer
redução em seus proventos de aposentadoria, uma vez consolidado direito
adquirido, que haverá de ser respeitado. Se os subsídios e os proventos
de aposentadoria possuem a mesma natureza, o juiz, enquanto em atividade
77 J.E. ABREU DE OLIVEIRA, ob. cit., p. 9.
78 RDA, vol. 54/279.
79 Apud ABREU DE OLIVEIRA, ob. cit., p. 239.
80 Idem, p. 240.
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
115
goza da garantia da irredutibilidade de vencimentos. Na inatividade, a garantia
da irredutibilidade passa a se constituir em direito adquirido a não ter os
seus proventos reduzidos.81
Da regra constitucional da majoração
70. A Constituição de 1946, por obra de seus constituintes e de acordo
com a redação de Mário Masagão, dispunha em seu art. 193: “Os proventos da
inatividade serão revistos sempre que, por motivo de alteração do poder aquisitivo
da moeda, se modificarem os vencimentos dos funcionários em atividade”.82
71. Durante a vigência desse dispositivo constitucional, as diversas leis
que se seguiram, a partir da Lei nº 488, de 15.11.1948, trouxeram viva
discussão, especialmente, sob o enfoque de que “revisão” não significaria
“equiparação”. Todavia, com o advento da Lei nº 2.622, de 18.10.1955, seu
art. 1º passou a determinar que o cálculo dos proventos dos servidores que se
encontravam na inatividade e dos que para ela fossem transferidos, seria feito
“à base dos que perceberem os servidores em atividade, a fim de que
seus proventos sejam sempre atualizados.”
Logo consagrou o princípio da “equiparação” e o dispositivo legal passou
a viger, sem eiva de qualquer inconstitucionalidade, porquanto podia o legislador
ordinário fixar tal critério, desde que a “revisão” permitida no dispositivo
legal não estava limitada e, muito menos, foi estabelecido índice para a correção
dos proventos da inatividade. O Congresso Nacional preferiu, assim sem
afronta ao texto constitucional, fixá-lo na percentagem máxima.
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
81 Antes da Emenda Constitucional nº 20/98, houve viva apreciação sobre o tema do “redutor salarial” na aposentadoria,
tema, aliás, que retorna à discussão com a Proposta de Emenda sobre a Reforma da Previdência.
Esclarece o eminente desembargador SENA REBOUÇAS — tantas vezes citado no decorrer deste estudo — que,
sobre o tema, MASSIMO BONOMO, secretário-geral da União Internacional dos Magistrados, fez a seguinte
ponderação: “A pensão deveria garantir ao juiz, que dedicou toda a sua vida ao trabalho, a manutenção de um
padrão de vida substancialmente análogo ao que ele teve em serviço. De outra forma, arrisca-se a que os
colegas na fase terminal de suas carreiras, os quais geralmente ocupam posição de realce na direção de
importantes setores judiciários, possam favorecer pessoas ou entidades capazes de lhes oferecer, após a
aposentadoria, o desenvolvimento de atividades bem remuneradas” (ob. cit., p. 70).
82 Aliás, o professor CAIO MÁRIO invoca que, em nosso Direito, o “estabelecimento de escala móvel nas
obrigações em dinheiro” tem a sua adoção em precedente da própria Constituição Federal de 1946, art. 193,
em relação aos proventos dos funcionários inativos (Revista Forense, vol. 157/50).
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
116
As leis de aumento de vencimentos, promulgadas posteriormente, adotaram
igual critério, sem qualquer eiva de inconstitucionalidade.
72. Com o advento da Constituição de 1988, a questão restou solucionada,
em definitivo, porquanto o texto constitucional previu, expressamente,
a equiparação no § 4º, do art. 40:
“Os proventos da aposentadoria serão revistos, na mesma proporção e
na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores
em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou
reclassificação do cargo ou função em que se deu a aposentadoria, na
forma da lei.”
Esse parágrafo foi suprimido pela Emenda Constitucional nº 20/98. Todavia,
a mesma Emenda acrescentou o § 8º ao art. 40, contendo a mesma
redação e, apenas, acrescentou no início do parágrafo: “Observado o disposto no
art. 37, XI ...” O dispositivo referido inclui a impossibilidade de os proventos
virem a “exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal
Federal”. É a única limitação.
VI. Conclusões
Da estrutura constitucional
73. Ficou demonstrado que o Poder Judiciário é órgão da soberania nacional,
ao lado do Poder Legislativo e do Poder Executivo.
Vigora o dogma constitucional da divisão e separação dos Poderes (art.
2º da CF), princípio fundamental que se encontra incluído entre as denominadas
cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, III).
74. O Brasil vive sob a égide de uma Constituição rígida, que fixa, expressamente,
os critérios a serem seguidos para sua reforma, através de Emenda,
vedando possa o Poder Reformador agir em descompasso ou em desarmonia
com o seu texto.
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
117
Do Poder Judiciário
75. A Constituição estrutura o Poder Judiciário e lhe confere o monopólio
da função jurisdicional, além de lhe outorgar efetiva autonomia institucional,
e a independência do Judiciário está assegurada com a autonomia
funcional concedida à Magistratura.83
76. Na forma do texto constitucional, o Judiciário é estruturado como
Poder Judiciário nacional, e, no exercício da função jurisdicional, não se coloca
acima de nenhum dos outros dois Poderes. É o melhor dos contrapesos aos
excessos dos Poderes Legislativo e Executivo. Sempre age assegurando ou restabelecendo
a paz jurídica.
Para o moderno Estado Democrático de Direito, a existência do Poder
Judiciário é vital. Amesquinhá-lo ou procurar diminuir sua independência e
autonomia, por via oblíqua ou reflexa, são condutas que colocam em risco as
conquistas democráticas em favor da Humanidade.
Do poder de iniciativa
77. Exatamente, em defesa de sua autonomia e independência, o Poder
Constituinte Originário consagrou, no art. 93, caput, a iniciativa reservada
ao Supremo Tribunal Federal da Lei Complementar que disporá sobre o Estatuto
da Magistratura, com a observância dos princípios ali especificados.
Se o poder de iniciativa é reservado pela Constituição ao Supremo Tribunal
Federal, há o razoável entendimento de existir usurpação de poderes, de
forma oblíqua, por parte do Poder Executivo, ao encaminhar Proposta de
Emenda Constitucional, no sentido de disciplinar a remuneração, a aposentadoria
e os proventos de inatividade dos juízes e o fazendo, até mesmo, de
forma discriminatória, lançando às urtigas o princípio fundamental da Magistratura
nacional e da verticalidade dos subsídios a partir do teto remuneratório
dos ministros do Supremo Tribunal Federal.
83 SAULO RAMOS, em recentíssimo e brilhante artigo jornalístico, observa: “Queiram ou não, as funções do juiz têm
direta e profunda importância para a vida de cada brasileiro e para as instituições. Por meio de uma sentença,
o magistrado dispõe, com absoluta independência e inteira soberania jurisdicional, sobre a liberdade das
pessoas, o patrimônio dos cidadãos, todos os direitos que a cada um de nós são assegurados pelo sistema
jurídico e que de nada valeriam sem juiz que os aplicasse. Por isso, age sem chefe que lhe dê ordens. Essa é
a carreira de Estado“ (Jornal Folha de S.Paulo, ed, de 3.8.2003, 1º caderno, p. A3).
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
118
Proposta de Emenda, por iniciativa do Poder Executivo, objetivando o
desideratum, antes anotado, pela via de alteração do inciso XI do art. 37 da
Constituição, pode, assim, ter sua constitucionalidade contestada.
Há o princípio assente que a “inobservância das fórmulas estabelecidas
pela Constituição para a feitura das leis determina a sua inconstitucionalidade”.
São regras que não podem ser dispensadas. Infringência às linhas mestras
traçadas no texto constitucional para o modus faciendi de composição da lei,
leva, no dizer do saudoso professor José Frederico Marques, “à confecção de um
quid sem forma nem figura de ato legislativo”.
Existe, assim, quando a própria Constituição reserva a iniciativa do processo
legislativo a um determinado Poder do Estado, a outorga de uma garantia
única e indisponível para a validade da lei, entendida em seu aspecto
amplo, isto é, abrangendo todas as espécies definidas no art. 59 da Carta
Constitucional.
Do poder reformador ou de 2o grau
78. A alteração do texto constitucional por meio de emendas pode infringir,
formal e materialmente, disposições da Constituição. Especialmente,
quando se põem, contrariamente, à declaração de permanência de certos princípios
inscritos na Magna Carta.
Diante de nossa Constituição, toda emenda tendente a alterar as denominadas
cláusulas pétreas (art. 60, § 4o) infringe, de forma material, a Constituição.
79. O poder de reforma da Constituição, como Poder Constituinte Derivado
de 2º grau, é condicionado e limitado e, por conseqüência, possui
poderes subordinados ao texto constitucional elaborado pelo Poder Constituinte
Originário. Bem por isso, diversas Constituições modernas, como a
nossa, selecionam, como o diz Canotilho, “um leque de matérias consideradas
como o cerne material da ordem constitucional e furtam essas matérias à disponibilidade
do poder de revisão”.
Além desses limites expressos e explícitos, discriminados em regra nas
denominadas cláusulas pétreas, existem os implícitos, cuja existência decorre
dos pressupostos em que se fundamenta o sistema constitucional considerado
em seu conjunto.
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
119
80. Entre as cláusulas pétreas de nossa Constituição, definidas em seu
art, 60, § 4º, estão a “separação dos poderes” e os “direitos e garantias individuais
(incisos III e IV).
Direitos e garantias individuais
81. Quanto aos direitos e garantias individuais, conforme entendimento
jurisprudencial do Pretório Excelso, não se vinculam, apenas, àqueles estampados
no art. 5º do texto constitucional, uma vez que existem outros decorrentes
do regime e dos princípios por ele adotados, além daqueles vigentes na
ordem jurídica interna, decorrentes de tratados internacionais aprovados pelo
Estado brasileiro.
Do controle jurisdicional das emendas à Constituição
82. Toda vez que uma emenda venha a infringir uma das cláusulas pétreas,
introduzindo mudança, estamos diante de uma clara usurpação, por
parte do Poder Reformador, de atuação própria e indelegável do Poder Constituinte
Originário.
83. Daí decorre a certeza incontestável de que as emendas à Constituição
estão sujeitas ao controle jurisdicional da constitucionalidade, difuso ou concentrado.
A doutrina é uniforme nesse entendimento, como também a jurisprudência
predominante no seio do Supremo Tribunal Federal. Predominante
e pacífica. Vários arestos deixaram decidido ser da competência do Pretório
Excelso, em face de nosso sistema constitucional, em controle difuso
ou concentrado, examinar a constitucionalidade, ou não, de emenda constitucional.
Do direito adquirido
84. O direito adquirido está protegido em norma constitucional e, por
vigorar entre os direitos e garantias individuais, incluído se encontra entre as
cláusulas pétreas, não sujeitas à atuação do Poder Reformador (art. 5º, XXXVI
e 60, § 4º, IV).
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
120
A definição legal do direito adquirido está no art. 6º, § 2º da Lei de
Introdução ao Código Civil.
Pela garantia constitucional, o direito adquirido não pode ser atingido
por lei posterior. Uma vez constituído, incorpora-se ao patrimônio jurídico
de seu titular.
A expressão “lei” contida no art. 5º, XXXVI da Constituição “é usada em
sentido amplo, compreendendo todas as espécies normativas do art. 59 da Constituição”
e entre elas está a Emenda Constitucional.
85. Em tais condições, não pode a Emenda à Constituição atingir não só
a regra da independência e separação dos Poderes, como também os direitos e
garantias individuais e, entre eles, o direito adquirido (art. 60, § 4º, III e IV).
86. Logo, não se sustenta o errôneo argumento de que “não há direito
adquirido contra a Constituição”. Argumento tão comum nas vozes de homens
do governo e de parlamentares. Sem falar na voz dos jornalistas, menos afeitos
ao trato jurídico e que, até hoje, designam “sentença” como “parecer do juiz”.
A uma, “entre duas Constituições não há solução de continuidade na proteção
dos direitos fundamentais que ambas preservam”.
A duas, “qualquer omissão ou exclusão casuística (secundária) do texto posterior”
é inócua “pela cláusula pétrea que proíbe as emendas tendentes a abolir os
direitos e garantias individuais”.
A três, “uma reforma constitucional não é ruptura, mas continuidade” e
“não muda uma palha na integridade do direito adquirido”.
A quatro, a cláusula pétrea do direito adquirido, obra do Poder Constituinte
Originário, deve ser respeitada pelo Poder Reformador ou Constituinte
Derivado de 2º grau.
A cinco, como a emenda constitucional é manifestação do Poder Reformador,
haverá de respeitar o que dispõem as regras contidas no texto constitucional e
que limitam e subordinam a sua existência.
A seis, o Constitucionalismo “implica harmonia entre o exercício do poder
político e o exercício dos direitos individuais”, e NOBERTO BOBBIO revela esse
prisma do Constitucionalismo “como a teoria do poder político limitado pela
existência dos direitos individuais”.
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
121
A sete, logo, é absurdo falar-se em inexistência de “direito adquirido contra a
Constituição”, a não ser que exista uma revolução capaz de impor uma ordem
constitucional absolutamente antagônica à presente sistemática jurídica.
Tratamento injusto ao Poder Judiciário
87. Há, no governo e no Parlamento, além de na mídia, a injustificável
tendência de desprezar e atacar o Poder Judiciário e, conseqüentemente, a
Magistratura, e de “apelidar” direitos e garantias da judicatura como “privilégios”.
Esquecem-se, porém, de que estão a desprestigiar o Poder Judiciário, minando
a sua independência, no desconhecimento solene e sombrio de que o
governo não se confunde com a Justiça. Olvidam, ainda, as lições da História.
Na Alemanha, sob a vigência da República de Weimar, passou a imperar o
descrédito e o desprezo pelos princípios democráticos e das instituições, deixando
o campo aberto para o aparecimento do Nazismo, sob a batuta de
Hitler, o qual tantos males, sofrimentos e degradações criou para a Humanidade.
Da mesma forma, na Itália de Mussolini.
São funestas e sombrias as investidas orquestradas contra o Poder Judiciário.
Garantias da Magistratura
88. As Constituições, quando outorgam garantias e direitos aos magistrados,
nada mais fazem do que visar à eficiência da Justiça, e não ao interesse
dos juízes. As garantias são da carreira de Estado da Magistratura.
As garantias da vitaliciedade e da inamovibilidade são indispensáveis no
exercício da função jurisdicional e criam, para o juiz, uma situação estável,
como “elemento típico essencial da existência do órgão judicante como poder no
mecanismo do Estado”.
A garantia da irredutibilidade dos subsídios, de seu turno, tem o escopo
de “pôr o juiz a salvo de perseguições governamentais traduzidas em restrições
de ordem econômica.”
89. Diante de tais aspectos constitucionais, surge despropositado e de
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
122
má-fé, ou se constitui em óbvia ignorância, falar-se em “privilégios” dos magistrados.
84 Atacam a remuneração dos magistrados — também considerada
própria de uma “classe privilegiada” — esquecidos, porém, da velha advertência
de Hamilton, um dos artífices brilhantes do constitucionalismo americano:
“O controle sobre os meios de subsistência de um homem equivale ao controle
sobre a sua vontade”.85
Chega a ser cômico, se não fosse trágico, dizer que a remuneração de um
ministro do Supremo Tribunal Federal em R$ 17.000,00 é “privilégio”.
Ora, na Corte Suprema, estão homens notáveis que, se na Advocacia
estivessem ou em qualquer outra atividade, ganhariam muito, muito mais.
Mas se sacrificam pelo povo brasileiro, para ganhar, no final de cada mês, os
R$ 17.000,00 — sem considerar os diversos descontos, inclusive de imposto
sobre a renda — considerados próprios de uma “classe privilegiada”.
Um único brado existe: é triste, estarrecedor e de uma injustiça palmar!
Mas, nessa cruzada de desrespeito e desprezo pelo Poder Judiciário e, por
conseqüência das regras constitucionais, tudo vale.
Pretende-se criar um clima adverso ao Poder Judiciário e à sua Magistratura.
Pressiona-se a mídia e busca-se o apoio da opinião pública. A partir daí,
chega-se ao absurdo de pretender, por via oblíqua, que o Judiciário julgue pressionado
pela mídia e pelo “clamor público”. Todavia ninguém pode pretender
que o Poder Judiciário julgue sob o impacto de tais pressões, pois, “certamente,
ninguém, pretenderá isso quando estiver em jogo o seu próprio direito”.86
Do subteto
90. O relatório da Câmara dos Deputados sobre o PEC nº 40/2003
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
84 Jornalistas que teimam em falar que juízes dão “parecer“, e não “sentença“, vêm a público falar em “privilégios”
dos juízes... Procuram incentivar o “clamor público” contra a Magistratura, esquecidos de que foi o denominado
“clamor público” que levou Cristo à morte de Cruz e Hitler ao poder na Alemanha. Entre as características da
ignorância, está a destruição do que é bom.
85 A Magistratura mais respeitada no mundo é a inglesa, especialmente, porque o juiz britânico ganha muito bem.
86 SENA REBOUÇAS, ob. cit., p. 301.
O experimentado, brilhante e festejado cronista CARLOS HEITOR CONY, em artigo publicado no jornal Folha de
S.Paulo, em sua edição do dia 14.12.1995, 1º caderno, p. 2, faz importantes observações: “Com o rolo
compressor da mídia em cima da sociedade, em breve não serão necessários tribunais, partidas de futebol e
eleições. Criado o clima, a realização de um julgamento, o jogo ou a eleição será dispensável. Há o risco de o
julgamento, o jogo ou a eleição contrariar o ‘MOOD’, o consenso das ruas. E aí, fica valendo o quê?”. Faz a
indagação, que, por si só, se responde: “para que existem tribunais, jogos de futebol e eleições, se os
resultados não podem contrariar a opinião pública?”.
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
123
propõe o absurdo subteto de 75% do subsídio mensal dos Desembargadores
dos Tribunais de Justiça dos Estados, propondo, com tal medida, a desintegração
do Estado Federal, vindo a quebrar a sistemática constitucional remuneratória
da verticalidade da Magistratura Nacional concebida pelo Poder
Constituinte Originário, além de criar uma Magistratura estadual de segunda
categoria, em face da Magistratura federal.87
Essa proposta de fixação de subteto, com a conseqüente diminuição do
subsídio mensal dos Desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados,
para aquém dos 90,25% dos subsídios dos ministros do Supremo Tribunal
Federal — não importando o índice de redução de tais valores — lança às
urtigas o princípio constitucional da garantia da irredutibilidade.
Do direito à aposentadoria
91. O direito à aposentadoria é garantia constitucional, não só dos magistrados,
como de todos os servidores públicos.
Direito este que corresponde ao dever do Estado em pagar os proventos
da inatividade.
92. Consoante entendimento pacífico, constante até mesmo de Súmula
do Supremo Tribunal Federal, o direito à aposentadoria se adquire no momento
em que o Magistrado reúne os requisitos exigidos pela lei. Logo, sua
aposentadoria haverá de ser regida pela lei vigente à época em que o Magistrado
cumpriu os requisitos por ela exigidos.
Lei nova — em qualquer das espécies normativas compreendidas no art.
59 da Constituição — não terá o efeito de modificar as condições exigidas
para a aposentadoria, mesmo que o magistrado venha a requerê-la já no império
da nova sistemática legal.
87 Não se pode olvidar que a tradição de existência e atuação dos Tribunais de Justiça dos Estados lhes oferece
reconhecimento de manejo mais experimentado, além de existirem regras de atuação e convivência de seus
membros sedimentadas na prática judicante.
De igual forma, o Supremo Tribunal Federal que existe e atua, desde os primórdios da República.
São fatores importantes. Por exemplo, o Tribunal de Justiça de São Paulo tem 127 anos de existência, mesmo
tempo de sua Magistratura de 1º grau, enquanto o Tribunal Regional Federal sediado na Capital daquele Estado
da Federação existe a partir do ano de 1989 e a Magistratura federal de 1º grau, depois de um hiato de quase
trinta anos, desde o ano de 1966. Pela proposta do subteto de 75%, um desembargador do Tribunal de Justiça
de São Paulo ganhará menos que um juiz federal substituto. Não são necessárias outras considerações para
se proclamar o absurdo da proposta.
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
124
Por exemplo, um desembargador de Tribunal de Justiça que tenha completado
os requisitos legais para a aposentadoria, antes da reforma introduzida
pela Emenda Constitucional nº 20/98, terá a sua inatividade regulada
pelo sistema constitucional anterior, mesmo que sua nomeação para o cargo
de ministro de Tribunal Superior tenha ocorrido posteriormente à Emenda.
O magistrado que incorporou ao seu patrimônio jurídico o direito à aposentadoria
e não o exerceu naquela oportunidade, vindo a continuar na judicatura,
muito embora em cargo outro, tem direito a aposentar-se com os
proventos desse último cargo, mesmo que não tenha o efetivo exercício de
cinco anos na nova investidura.
Trata-se de interpretação consentânea com o princípio de regência da
aposentadoria diante do sistema legal vigente¸ quando seus requisitos foram
preenchidos. Em outras palavras, o juiz que completou o tempo de mais de
cinco (5) anos de “judicatura”, antes da reforma constitucional de 1998,
passou a ter a judicatura como categoria jurídica a reger toda a sua vida futura
na Magistratura, independentemente do cargo que passou a exercer.
Em outras palavras: o direito à aposentadoria, adquirido na vigência da
Constituição anterior, incorpora o direito aos proventos no cargo em que se
aposentar, até porque ninguém deve ser punido por haver continuado a trabalhar.
E não podemos — mais uma vez se repete — confundir o exercício com
o próprio direito. Se o direito foi adquirido pela lei vigente à época — e a
Constituição é a maior das leis —, o magistrado adiou, apenas, o seu exercício.
Logo, quando vier a exercer o seu direito à aposentadoria, com base e
fundamento na regra constitucional anterior, não há justificativa para aplicarse
o § 1º, inciso III, do art. 40, na redação que lhe deu a Emenda Constitucional
nº 20/98. As novas exigências contidas nesse dispositivo estão afastadas,
diante do direito adquirido constituído com base exclusiva no tempo de judicatura.
Em suma, requerida a aposentadoria, na sua concessão incide, imediatamente,
o contido no § 3º do art. 40: os proventos da aposentadoria “serão
calculados com base na remuneração do servidor no cargo efetivo em que se der a
aposentadoria e, na forma da lei, corresponderão à totalidade da remuneração.
93. O termo “judicatura”, na primitiva redação do art. 93, VI, da Constituição
foi empregado pelo legislador constituinte originário em termos gerais.
Isso porque o termo “judicatura” sempre esteve ligado à função de julgar,
atividade própria e exclusiva da Magistratura.
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
125
Do provento da aposentadoria
94. O provento da aposentadoria tem a mesma natureza jurídica do
vencimento, ou subsídio, desse sendo uma continuação ou prolongamento.
O Estado, ao conceder a aposentadoria assume a obrigação de continuar a
prover a subsistência do servidor ou agente público. Não há falar-se em aposentadoria
se não há provento, isto é, a “remuneração dos serviços prestados”.
A concessão da aposentadoria faz nascer para o aposentado um direito
adquirido intangível. O provento da aposentadoria constitui-se num crédito
contra o Estado.
Seja direito adquirido não se discute, inclusive diante de reiteradas decisões
do Pretório Excelso. Em suma, o provento de aposentadoria incorpora-se
ao patrimônio jurídico do agente público.
Logo, o magistrado aposentado não poderá ter os seus proventos reduzidos.
Se subsídios e proventos possuem a mesma natureza jurídica, o juiz,
enquanto em atividade, goza da garantia da irredutibilidade de seus subsídios.
Na inatividade, a garantia da irredutibilidade passa a se constituir em
direito adquirido à não-redução dos seus proventos.
95. A regra constitucional da majoração ou da revisão dos proventos da
aposentadoria tem sua origem na Carta Magna de 1946 (art. 193). Foi reafirmada
na legislação ordinária, que consagrou o princípio da equiparação, isto
é, de que os proventos da aposentadoria serão calculados com base nos vencimentos
percebidos pelos servidores em atividade, a fim de que “sejam sempre
atualizados”.
Regra de equiparação esta repetida na redação originária do § 4º do art.
40 da Constituição. Esse parágrafo foi suprimido pela Emenda Constitucional
nº 20/98, mas referida Emenda acrescentou o § 8º ao art. 40, contendo a
mesma redação, apenas acrescentando, no início do parágrafo, a impossibilidade
de excederem os proventos “o subsídio mensal, em espécie, dos ministros do
Supremo Tribunal Federal”. É a única limitação.
Conclusão final
96. Por todo o exposto, o Projeto de Emenda Constitucional nº 40/03
apresenta as diversas inconstitucionalidades destacadas neste estudo.
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
126
Portanto, o Congresso Nacional é chamado a barrar tais inconstitucionalidades,
no exercício de sua função precípua de editar leis e emendas que
estejam em harmonia com o texto constitucional.
De outra parte, o Poder Reformador é limitado e subordinado à Constituição
e, entre suas limitações, está a impossibilidade de revisar as denominadas
cláusulas pétreas consagradas no artigo 60, § 4º do texto constitucional.
Trata-se de um gravíssimo erro ou engano, argumentar que não há direito
adquirido “contra a Constituição”, como demonstrado no decorrer deste
estudo. Aqueles que se utilizam de tal argumento, acabam por desconhecer os
princípios gerais, cujo conhecimento é imperativo, valendo a célebre lição
deixada pelo saudoso e querido professor Vicente Ráo no prefácio de sua
monumental obra: “E procurei, acima de tudo, reafirmar os princípios gerais,
cuja ignorância, quando não induz a erro, leva à criação de rábulas em lugar de
juristas”.88
A PEC nº 40/2003, de sua parte, elaborada por técnicos do governo e
examinada por parlamentares, uma vez já existindo relatório da Câmara
dos Deputados, atropela, em muitos aspectos, os princípios gerais constitucionais.
89
Termino este estudo, deixando expressa a seguinte lição, ditada pelo
gênio do saudoso e querido professor Vicente Ráo. Depois de anotar ser
importante conhecer as diferentes fases da organização judiciária do Estado
brasileiro, porquanto “equivale a conhecer a própria história política e social
da nação”, pontifica:
“Esse conhecimento revela a existência, nas sucessivas reformas, de
88 Ob. cit., p. 48.
89 Não se pode, ademais, sob a capa de realizar reforma na Previdência Social, olvidar que o seu déficit não tem
como causa única o pagamento dos proventos de aposentadoria. Com efeito, como observa a professora MARIA
GARCIA, “de um lado, falta a contribuição governamental (prevista nos planos atuariais de custeio) e, de outro,
as contribuições dos trabalhadores (inclusive dos servidores públicos) são utilizadas com outros propósitos ou
finalidades, estranhos à previdência social e, pois, ao interesse dos trabalhadores/contribuintes do sistema
previdenciário” (“Previdência Social e o Déficit Previdenciário” in Revista de Direito Constitucional e Internacional,
São Paulo: Ed. RT, vol. 41/116, especialmente p. 23). Com base em inúmeros dados, conclui: “Tecnicamente,
o déficit não existe“ (idem).
Os recursos arrecadados pela União não são, assim, repassados, em sua integralidade, para o INSS. E assim por
diante.
Tal realidade não vem a público. Agora, em atacar a Magistratura, falando em “privilégios”, todos se arvoram.
Até mesmo jornalistas, que nem mesmo se interessam em buscar conhecer a distinção entre “parecer” e
“sentença”...
OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003
127
elementos novos de adequação aos novos tempos, é certo, mas também
ostenta a continuidade da preservação e do respeito aos princípios e
regras fundamentais da natureza e das finalidades excelsas da razão
de ser desse magno Poder. Conhecimento que demonstra, ao mesmo
tempo, a tradição e o progresso do Direito Judiciário.
Tais reformas não se fazem arbitrariamente, com desrespeito do passado,
com violentação dos antecedentes históricos desse Poder que simboliza
a própria vida evolucional da coletividade, pois a própria nação
evolui de grau em grau e não aos saltos. É o passado, de fato, a força
que inspira o presente e propicia o futuro; e seu desconhecimento só
pode ser causa de imperfeições, quando não de graves males políticos e
sociais. E a história da Organização Judiciária, desde logo, revela que
Justiça não poderia haver sem juízes independentes, sem garantias dessa
independência, sem meios para cumprirem seus deveres com rapidez
e ao alcance de todos, ricos e pobres, sem, portanto, descentralização das
Magistraturas, sem o melhor funcionamento de seus órgãos auxiliares”.90
90 Prefácio à obra O Poder Judiciário a partir da Independência, já citada, p. 4. Essa lição fantástica, o querido
mestre deu aos 84 (oitenta e quatro) anos de idade. Sua vida foi exemplo magnífico de amor ao são Direito!
O PODER JUDICIÁRIO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL
Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 2, p. 83-127, julho/dezembro - 2003

fonte: http://www.epm.org.br/NR/rdonlyres/C5E335DF-2AE3-45B4-86E1-FDCAD41FFDB7/206/RevistadaEPMano4n2.pdf

Nenhum comentário:

ITANHAÉM, MEU PARAÍSO

ITANHAÉM, MEU PARAÍSO
Crescer é aprender que você não depende de ninguém para ser feliz.

MARQUINHOS, NOSSAS ROSAS ESTÃO AQUI: FICARAM LINDAS!

MARQUINHOS, NOSSAS ROSAS ESTÃO AQUI: FICARAM LINDAS!

Arquivo do blog